– Eu sabo, sim!
Ao contrário de Sócrates, Letícia sabe que tudo sabe. E, imbuída de uma missão divina, precisa revelar isso ao mundo. E ai de quem duvide.
Aos três anos de idade quer toda a atenção das câmeras para demonstrar que sabe apontar, no mapa do Rio de Janeiro, o bairro das ‘Lalanjeilas’, onde mora. Fica perto do ‘tlabálio’ do papai, que reconhece por conta do desenho do avião do aeroporto. Encontra também a casa da avó, a escola, a casa dos amigos. Enuncia endereço de cada um e, com o desdém blasé próprio dos especialistas, adentra as minúcias da arte cartográfica: “onde está azul é por que tem água!”
Água do mar que, na prática, desconhece. Não sabe nadar. Mas a solução está sempre, sempre, na ponta da língua.
– Vou fazer aula de ‘natinação’
Toda essa assertividade epistemologica ganha agora mais vulto com a recém descoberta das locuções verbais e, com elas, uma ênfase filósofo-jocosa na ponderação contemplativa do cotidiano. De testa franzida e dedinho apontado para cima, diz agora coisas do tipo: “Na verdade, não ‘quelo’ mais ‘blincar’ de ‘quebla-cabeça’, ‘quelo’ fazer xixi.” “Na realidade, ‘quelo yorgute’.”
Sabe o que quer. Recentemente, assustou-se, ao ser repreendida pela mãe, por enfiar o dedo na tomada. Chorou, esperneou, reclamou, mas… voltou à tomada. Nem deu nem tempo de impedir:
– Eu fiz a ‘bobela’, eu conserto a ‘bobela’!
Sentenciou a si com sede de justiça. Havia de recolocar o protetor de tomadas de onde nunca deveria ter saído! E muito brava!
A aula da criança é a vida. Em tempo real. Desde que não as atrapalhemos. Desde que as deixemos serem… crianças. Coisa que, aliás, fingem, a todo momento, não quererem ser. Ela mesma revelou dia desses — no silêncio de um elevador cheio — que é já moça ‘glande’. Não precisa de adulto.
Daí que se revolta, recorrentemente, quando faço as coisas por ela. Afivelar a sandália, atar o cinto da cadeirinha do carro, apertar o botão do elevador, levantar o ‘capucho’ do vestido, usar o ‘controio’ da TV… As mais elementares tarefas do dia a dia, caso tomemos a frente, podem fundamentar argumentos-de-manifestação-intensa-de-incômodo-infantil. Em português livre: um berreiro sem fim.
– “Papai, assim tá ‘rúnho’!” — reclama…
Crianças não ligam para resultado. O foco delas é o processo. A qualidade do ato não as interessa. Aprendem fazendo e sem pensar muito a respeito. Se pensassem, como nós, não fariam (como nós!)
Vivem intensamente o presente. Um presente que vai se desenhando com lápis cera em folhas de rascunho de infância. O futuro, ao contrário, é coisa de adulto. O que é um flagrante contrassenso: temos bem menos tempo pela frente pra se apegar.
Uma criança é sempre um instante eterno. Tempo real e ao vivo. E desse convívio diário rememoramos as pequenas parcelas desses instantes de imortalidade que um dia foram nossas. Os pequenos pedaços de entusiasmo pueril que, mordidos pela dureza da vida, deixamos guardados junto aos brinquedos daquele antigo baú de vime da casa da avó.
O convívio diário com uma criança ressignifica o tempo. Com elas, de repente, o futuro vira coisa do passado.
O passado, atrasado, vai ficando pra o futuro. Não há melhor Presente.
* Crônica originalmente publicada na Revista New Order pelo mesmo autor