Ruas vazias, portas fechadas, portões recolhidos. Sobrou a janela, última fronteira aberta. De esperança.
Dela fito a mangueira do quintal do prédio. Gigante. Daquelas que não se ousa supor a idade.
Estava aqui antes de mim, do prédio, dos paralelepípedos, da própria rua. Do bairro, talvez. Eterna.
Bem fornida. Desleixadamente encorpada. Variadas matizes de verde.
As folhas da base, mais sossegadas, escuras. As do topo, claras, sacodem-se despudoradas como o vento.
Alheia a tudo, a mangueira assiste muda à crise do mundo.
Indiferente. Mas, terna. Séculos. Brisa úmida de cheiro doce em domicílio e sombra fresca.
Sobriedade, comedimento, frugalidade, temperança, simplicidade. Experiência. Aquela pose indiferente dos que não precisam reiterar suas glórias a ninguém.
A mangueira da janela. Em quarentena eterna.
Escravos negros fugidios já teriam se alimentado em seu tronco retorcido? Poetas líricos já a teriam versado em páginas amareladas de sotaque romantista?
Ou teria preferido acolher as mais distintas gerações do imaginário infantil dependurando-se de seus galhos, ao longo dos séculos, para simular ingênuas aventuras de glória.
O quanto ela não testemunhou?
Injustiças, guerras, ignorância, flagelos de toda ordem?
As distopias que permearam a história do país nos últimos séculos? As revoluções, os golpes, os conflitos armados?
A guerra fria, os anos de chumbo, as recessões, as demissões em massa, as carestias?
A violência, a poluição, os dilúvios tropicais, as agruras da vida urbana…
As doenças.
As epidemias.
Nada… Em quarentena eterna.
E cada vez mais forte.
Artigo originalmente publicado no Medium pelo mesmo autor