— Peguei emprestada, papai!
Minha filha de dois anos empunhava como um troféu nas mãos o tesouro que acabara de desencavar: uma fofolete. Aquela dos anos 80. Velhinha, sujinha, mas íntegra. Uma sobrevivente do espólio perdido da geração Xuxa.
— Como assim, emprestada? De quem?
— Da escola, pai. Peguei.
— Como assim, peguei? Pediu para alguém?
Não há quem exerça melhor a arte da dissimulação do que uma menina em idade de desfraldar. Ainda que dê bandeira, a desfaçatez é de uma jocosidade que dá de ombros para qualquer argumento lógico. Dá tempo nem de elaborar…
— É a minha filhinha
Suspirava com os olhinhos marejados por uma devoção maternal precoce. Girava o tronco para lá e pra cá, ninando nas mãos a bonequinha verde com capuz de orelha de coelho. Cantava baixinho as canções aprendidas na escola, sussurrando em seu ouvidinho minúsculo.
— Lelê, você vai ter que…
— Shhhh!! Quase dormindo!
Sei o trabalho que dá. Desencavar o cancioneiro infantil popular já cansado ao final do dia. Rever desenhos no vídeo pela centésima vez (a parte do tubarão do Nemo pela milésima). Contar as histórias prediletas de sempre, sem deixar dever na performance! Para então fingir dormir ao seu lado por alguns minutos e ir apalpando o assoalho com as pontas dos pés até conseguir sair do quarto. Ainda que sob risco de ser denunciado pelo alívio incontrolável de um suspiro de vitória antes do tempo. Difícil com ela… Que dirá com a fofolete.
— Filha, vamos conversar?
Fazia cafuné no pequeno tufo de cabelo sintético dourado. Habilidade com as mãos que até então eu desconhecia.
— Papai, vou ‘pô no bêcinho’
Comercial da pampers, johnson, parmalat, sei lá… Colocou a fofolete em sua própria cama, ajustando a cabecinha da boneca no travesseiro. Foi junto, encolhendo-se o tanto quanto podia para abraçá-la em forma de conchinha. Seus olhos eram todos dela. Sorria enquanto acarinhava seu corpo preenchido com bolinhas de isopor.
Já passei por muito nessa vida e não seria vencido por uma “campanha de Natal da Estrela”. Minha autoridade de pai estava em cheque!
— Eu sei que você gostou ! Acontece que no mundo dos adultos você não pode …
— Vai acordar minha filha!!!
Fez cara feia, franziu a fronte, encarou e tudo. Que papo é esse? Sermão agora? Vai mexer com uma fêmea acolhendo a própria prole?
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Estava determinada. Pouco disposta a dar sentido as minhas veleidades éticas. O tamanho também não era problema. Filho é filho, amamos do jeito que vieram ao mundo! E o inverossímil sono de uma fofolete furtada, menos ainda. Ignorava os caprichos da propriedade. E provavelmente ainda relutará bastante antes de aceitar isso. Como todos, algum dia.
Lembro então que há quem ainda vá resistir por mais tempo. Bem mais. Em cada esquina fria da cidade. Sob cada cobertor rasgado, fedido e sujo, que envelopa as crianças do medo da noite. Sem bonecas, sobre a calçada, repartindo as sobras do lixo com a mãe e as irmãs, invariavelmente junto a um cachorro fiel não menos faminto.
E elas viverão um mundo que a minha filha nunca precisou conhecer. Um mundo que as lembrará não só uma noite, mas a cada dia, de tudo que não lhes pertence. A cada desejo de boneca, de vestidinho da Frozen, de saia colorida que gira como bailarina, ou de salto alto de mocinha mais velha.
E não haverá poesia suficiente numa crônica de fofolete para confortá-las de seus medos do lobo ou do tubarão do Nemo. Muito menos de seus pequenos furtos. Desses que todos nós – todos nós – um dia fizemos quando criança.
Eu só queria explicar a ela como são as coisas.
— Lelê, é que preciso te dizer que…
— Você vai contar uma histórinha pra ela, pai?
Enfim, pra que tanta pressa…
Texto originalmente publicado na Revista New Order pelo mesmo autor