Não se vê arvores daqui de cima, nenhuma. Há um vácuo cor de rocha de entardecer, entrecortado pelas escarpas afiadas das montanhas da Cordilheira. Com os cumes descoloridos pelo branco esparramado de neve,  faz vigília a mais uma travessia aérea rumo a San Pedro do Atacama, “hub” das expedições ao deserto mais seco do mundo.

O paredão andino alcança, em alguns casos, quase sete mil metros de pedra e água congelada; altitude muito próxima do meu capuchino, que acima do colo, sobre a mesinha afixada à poltrona do passageiro inquieto da frente, não precisava estar fervendo, já que agora saltita com mais vigor, por galhofa da turbulência típica nas proximidades dos Andes.

O comandante tira o motor e cala a turbina, aumentando, na proporção inversa, a apreensão de quem não gosta de lembrar os efeitos da gravidade nessa altitude. Pede para atar os cintos e a tripulação some correndo com o carrinho sortido de amendoins, que levado às cortinas do fim do corredor, não distrairá mais o nervosismo dos passageiros .

É quando, da janelinha, os picos que predominavam dão vez a uma profusão de minúsculos lagos trançados por corredeiras. Inquilinos do Planalto Atacamenho, imagina-se, devem resultar de algum degelo, já que chuva por aqui…

Atacama O Atacama visto de cima

Atacama visto de cima: uma ode do espaço à inércia

Na terra árida do Atacama não há traços retos. Há uma sucessão de fendas anônimas, rasgadas involuntariamente pelo tempo.

Por vezes, colorem o deserto com tons que só a luz do sol enxerga ou, quando um olhar mais atento denuncia, revelam-se nas variações do ocre da terra seca de vegetação rasteira, aclarado por estrelas de todas as ordens de grandeza e pela raspagem do vento que já as entalha há algum tempo. Desabitadas, tem por vocação, hoje, a de passarela de Airbus.

O que chama atenção, porém, é o vazio. O silencio. O não preenchido. O fruto do intervalo no espaço. O parênteses do tempo. A aerodinâmica perfeita para a credibilidade do movimento. Uma ode do espaço à inércia.

Atacama visto de cima

Em nosso cotidiano urbano, que nos ocupa permanentemente de compromissos, horários, tarefas, informações de toda ordem, nada contrapõem melhor o caótico do que a vastidão inócua e surpreendente da imensidão lunar do deserto mais seco do mundo.

Vazio que lava alma, descansa a vista e descasca – polo a polo – a ansiedade, revelando o excesso de desenecessidades acumuladas.

Tal como um papel pedra – daqueles que colávamos no isopor para os trabalhos de grupo da escola – as montanhas do deserto estão rabiscadas a esmo, segundo uma fundamentação libertária e infantil.

Um tipo de estrada cujo fim não chega e que quando termina, até onde a vista alcança, não chega a nenhum lugar. Longas, afinam-se cada vez mais, até, por fim, desfocarem-se, espetando a bunda do horizonte.

Na terra árida do Atacama não há traços retos. Há uma sucessão de fendas anônimas, rasgadas involuntariamente pelo tempo.

Considerado o mais próximo do que se pode entender da Lua, o Atacama é a Terra em sua condição mais arcaica, mais ingênua, simples e essencial.

É o mesmo planeta. Despossuído de tudo que hoje o possui.

No Atacama, a Terra está Nua. O resto é silêncio.

Fotos: @canva

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Daniel Marinho

Editor do Escriba de Bordo

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