Caminho por becos estreitos entre fachadas desbotadas pelas marcas do peso do passado. O plano de fundo do tempo molda o vai e vem de mulheres ornamentadas com roupas tão coloridas quanto as frutas que carregam na cabeça.
É verão, mas as flores dos casarões coloniais não cabem em si de primavera. Como namoradeiras, debruçam pétalas avermelhadas das sacadas que se alongam em tranças sobre as ruas, derrubando as folhas secas na calçada.
Uma colombiana de vestido decotado disputa passo – e olhares – com os outros sotaques do caminho. São muitos, vieram de diferentes partes do mundo para despistar o suor equatorial numa gelateria que expõe agora uma escala de cores dos sabores do verão do Caribe.
A Cidade Murada de Cartagena das Índias é o desassossego dos sentidos. Despudoradamente sensorial e imagética, dá capa de revista a cada esquina. Ironia do destino já que nasceu para esconder-se do mundo, não para modelar.
Cartagena já foi das índias. Erguida sobre os escombros das etnias Karib e Kalamaris, dizimadas pelos espanhóis ao longo do século XVI, a cidade foi fundada em 1533 e logo tornou-se o principal hub de escoamento do ouro na américa espanhola.
Desde cedo, fora cobiçada por coroas europeias, piratas, corsários e aventureiros em busca de um eldorado no novo mundo para chamar de seu. Não à toa, desde 1796, a área correspondente a cidade velha de Cartagena está enclausurada. Cercada por uma muralha de onze quilômetros de perímetro, sob a guarda de canhões apontados para o Mar do Caribe.
Hoje não há mais sentinela nas torres, traficantes de escravos, mercadores de ouro, ou inquisidores com sede do fogo. A Cartagena temerosa e obscura de outrora deu vez a uma cidade charmosa, acolhedora, pacífica e muito, muito quente.
Sentado à sombra em um dos bancos da Praça Bolívar, tento enganar o calor. Talvez seja o mesmo em que há mais de 60 anos Gabriel García Márquez precisou buscar abrigo para dormir sua primeira noite na cidade.
Gabo, como era chamado entre os seus, chegou a Cartagena numa noite esquecida de 1948 e não achou o endereço do anfitrião. Sem dinheiro, tomou um dos bancos da praça por cama, o que, por algum motivo, desagradou o carabineiro (guarda local), que o encaminhou à uma hospedagem dentro da Lei: a cadeia. Na época, o toque de recolher não admitia “vagabundos na rua a essa hora da noite”.
Cartagena nos passos de Gabriel Garcia Márquez
Livro: O Amor nos Tempos do Cólera
A Bolívar, antiga Plaza de la Inquisicion, era um de seus lugares prediletos; onde sentava-se para observar a vida, buscar inspiração. Hoje está arrodeada de atrações turísticas badaladas, como o Museu Histórico Casa de la Inquisición, o Museu do Ouro Zenú, o Museu das Esmeraldas e um calçadão enclausurado por arcos, cenário de um de “O Amor em Tempos de Cólera”. Era onde Florentino Arriza ditava cartas de amor aos datilógrafos de plantão para sua musa Fermina Daza.
A história do livro se passa na transição do século XIX ao XX em Cartagena. Foi inspirado na história do romance proibido dos pais do autor, um telegrafista e a filha de uma família cartaginense abastada.
Os dois se conhecem adolescentes, mas o romance é impedido pelo pai de Fermina, que busca no casamento da filha uma oportunidade de ascensão social e, por isso, envia-a a outra cidade. O romance continua nos anos subsequentes em trocas de mensagens enviadas por telégrafo. Mas, anos depois, ao se reencontrarem, Fermina acaba se casando com o renomado médico Juvenal Urbino, o que não desestabiliza Florentino que faz uma “promessa de amor eterno de cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias” a sua musa.
Claro, não é só isso. As histórias do livro se desvelam em caminhos variados, surpreendentes e, muitas vezes inacreditáveis, a partir dessa singela linha condutora. É entremeado por reflexões, narrativas e referências ao contexto político-social, às guerras civis, às estruturas de poder, às relações sociais, às relações familiares e às mais diversas facetas desse período histórico da América Latina.
O livro começou a ser escrito em 1984, em Cartagena, ao final do ano sabático que García Márquez se concedeu após receber o Prêmio Nobel por “Cem Anos de Solidão”. Na cidade, o autor recolheu alguns dos episódios contados no livro, como a epidemia de cólera que assolou Cartagena no final do século XIX e o naufrágio do mítico galeão espanhol San Jose, carregado de ouro e fortunas, então surrupiadas da América pela Coroa Espanhola.
Cartagena nos passos de Gabriel Garcia Márquez
Livro: Viver para Contar
Os escritores de cartas, mensageiros relatados em “O Amor nos tempos do Cólera”, ainda existem e hoje batem ponto diariamente nas imediações do principal portão de entrada de Cartagena, abaixo da Torre do Relógio, importante marco histórico local.
A torre é uma construção imponente sobre três portões incrustrados na espessa muralha cartaginense, que demarca a entrada principal da chamada Cidade Velha. Gabo a conhece bem e descreveu a sensação de adentrar a cidade pelo portão primeira vez em sua autobiografia “Viver para Contar”.
“Me bastou dar um passo dentro da muralha para vê-la em toda a sua grandeza, à luz das seis da tarde, e não pude reprimir o sentimento de ter voltado a nascer”.
“Viver para Contar” é um romance autobiográfico. Nele, Gabo escolheu para desvelar tudo o que nunca havia revelado em público até então. O relato épico é o de sua própria vida, quando o autor oferece a memória de seus anos de infância e juventude, até a publicação de seu primeiro livro, aqueles em que ele funda o imaginário de suas narrativas e romances, clássicos do século XX.
Aqui, não só Cartagena, mas Arataca, Barranquilla, Bogotá, entre outras cidades colombianas, servem de esteio a trama que perpassa sua formação como ser humano e escritor. Uma oportunidade de apreender a história e constituição do escritor em mais uma de suas narrativas únicas e surpreendentes.
Cartagena nos passos de Gabriel Garcia Márquez
Livro: O Relato de um Náufrago
O escritor viveu cerca de dois anos em Cartagena. Foi onde iniciou sua carreira jornalística como repórter no diário El Espectador. Apesar do pouco tempo, revelou anos depois como esta época havia sido decisiva para a construção de seu estilo literário, o Realismo Fantástico. Foi no El Espectador que o então jovem repórter investigou a história do marinheiro sobrevivente de um acidente no Mar do Caribe em 1955.
Após passar 10 dias à deriva em uma balsa sem ter o que comer e beber e aparecer moribundo a alguns a quilômetros de Cartagena, o náufrago havia sido feito de herói pela Ditadura colombiana que então comandava o País. O regime militar havia se apropriado da história e proibido o marinheiro Luis Alejandro Velasco de dar entrevistas a respeito do evento que terminou por suscitar o clamor popular com o óbito de 7 militares.
Anos depois, Velasco, procurou a imprensa para revelar alguns detalhes ocultados abaixo do tapete. O assunto chegou a Gabo que, após 20 sessões de entrevistas, deteve-se em uma produção textual minuciosa a respeito do evento. As narrativas foram então originalmente publicadas pelo El Espectador em fascículos semanais.
Conforme o novo relato, o barco afundara então não mais pela força das circunstâncias climáticas, mas pelo excesso de carga contrabandeada, levada na embarcação oficial da Marinha colombiana. Do mesmo modo, o destroier não teria retornado ao ponto do acidente para resgatar os oito marinheiros, largando-os a própria sorte. Proveniente da cidade de Mobile, nos EUA, a embarcação seguiu zarpando, após o acidente, rumo a Cartagena sem olhar para trás.
A revelação converteu-se imediatamente em denúncia política. E os 14 fascículos publicados pelo jornal dariam origem, anos mais tarde, ao livro O Relato de um Náufrago. Antes, porém, a denúncia geraria uma quase revolta popular. Renderia ao jornal, seu fechamento e ao repórter, o exílio.
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Respostas de 6
Orgulho de ter um “germo” (como diz a Lelê) escritor e repórter sensivel como você. Não conhecia a historia de Gabriel García Márquez, e sua primeira noite em Cartagena num banco de praça me fez sentir sua humildade diante da vida.. Não li Relato de um Náufrago, mas Cem Anos de Solidão é inesquecível. Continue escrevendo sempre, Dani. Sua sogra
Essa história do banco da praça é surpreendente, não? Eu e Mari, aliás, passamos por ele na Pça Bolivar. E como é interessante rever a história destes ícones sob essa ótica. Temos uma tendência em mitificá-los demais… Acho que você iria curtir muito o “Relato de um Náufrago”! Até por que tem uns elementos de suspense e sei que gosta. Tá lá na casa do seu “germo”! Vou separar.
Fantástico Daniel! Parabéns!
Um relato histórico digno de um nativo Cartagines. Discorrendo com tantos detalhes históricos, com minúcias preciosas, da cidade de Cartagena me puseram a pensar quando foi que nasceu este seu interesse pela cultura histórica da cidade, de seu povo e sobretudo de Garcia Marques que você brilhantemente retratou com um sentimento de admiração e devoção.
Um relato Fantástico e apaixonado, muito bem escrito e eivado de uma paixão que só mesmo os grandes escritores são capazes de fazê-lo. Seu texto me tocou profundamente e me fez recordar minha passagem de dois anos ( 1993/1994) pela Colômbia.
Obrigado!
Que maravilha, Cmte! De onde surgiu meu interesse por Garcia Márquez?! Você que me meteu nessa! kkkk Você me apresentou ao Gabo, lembra? Ele e o Zafon! És praticamente um guru literário! rs É isso que dá estar cercado de boas influências e amizades nessa vida… Sem a nossa convivência, talvez esse material nem existisse. Essa é a verdade. De quebra, com minha ida à Colômbia em 2019, nasceu a paixão por aquele lugar.
Uau, que saudades de Cartagena!!! Quero muito voltar e adorei suas impressões. Obrigada por compartilhar. Beijinhos
Valeu, Elizabeth! Cartagena é definitivamente um lugar para sempre voltar! Obrigado