Já passava das 18h quando os motores da embarcação foram acionados. Numa latitude do planeta em que o sol, nessa época, só vai para cama pouco antes da meia-noite, os passageiros ainda empapuçavam o rosto de protetor solar, precavidos da “insolação noturna”.
Não era um barco comum. Para adentrar o Brazo Rico do Lago Argentino – que margeia a face sul do Glaciar Perito Moreno – a embarcação há de cortar, vez por outra, pedaços de gelo desgarrados das pedras maiores que então, boiando, nos observavam de mais longe.
Um cenário por si só inusitado; daqueles para nos faz lembrar das expedições do Amyr Klink. Curioso, pergunto a temperatura da água: “dos grados Celsius… Lo suficiente como para morir de hipotermia en cuestión de minutos” afirmava o Comandante da embarcação, pouco antes de meu arrependimento.
A imponência daquela monstruosidade branca surpreendia. Subia a 70m acima da água, margeando-a por 5km e adentrava Cordilheira dos Andes afora. Invariavelmente, despedaçava-se nas beiradas, em estrondos graves e cinematográficos; em constante movimento, o penhasco avança e retrocede, há muito tempo, conforme as vaidades da estação do ano.
Do desembarque no píer, uma fila indiana seguiu pelos últimos resquícios da terra árida dos arredores de El Calafate , na Patagônia Argentina, cidade-base da expedição. Gorros, óculos, ceroulas, casacos, cachecol, impermeáveis, luvas… faltava o mais indispensável: “los crampones”.
Uma estrutura forte de ferro grudada à sola do sapato com extremidades pontiagudas afiadas para baixo e para frente para a aderência dos pés ao gelo. Em geleira, anda-se de “ferradura”. Sem elas, é patinação na certa.
Aos poucos, as passadas deixavam de arranhar a terra que agora se escondia sob um manto poroso. De pedra em pedra, floco em floco, começava a clarear tudo por completo.
Andar já não seria como antes. Crocante, o chão falava a cada pegada numa conexão intensa com uma terra que já não mais existia e dava vez ao estado mais bruto da água.
Sólida, ela é que leva adiante, empurrando as travas dos crampones, me balançando como um pinguim. Como o destino não se revelava, em meio à amplidão nívea do jardim de esculturas de gelo, sem referências espaciais evidentes, restava confiar na fila indiana.
A fila de babel, onde os mais diferentes idiomas se compreendiam, já que encanto – e o espanto – são linguagens universais. Subindo e descendo as colinas de gelo por mais de uma hora, o olhar ia sendo treinado a enxergar o que até então fora menos óbvio.
O derretimento dos picos em pequenas duchas de verão, os poços de água límpida brotando do fundo da Terra, as fendas que sob o reflexo da luz revelavam-se em um azul anil da cor do céu daquele dia, agora espelhado na sensação de caminhar sobre cristais no mundo de Guliver. Uma experiência ficcional, não fosse o frio do gelo que desperta mais do que qualquer beliscão.
Aos poucos, as passadas deixavam de arranhar a terra que agora se escondia sob um manto poroso. De pedra em pedra, floco em floco, começava a clarear tudo por completo.
No desfecho do trekking, um convite. Em uma mesa improvisada sobre a geleira com vista para o lago, alfajores de dulce de leche alternavam-se com doses de whisky numa festa poliglota.
Caubói? Que nada! Whisky resfriado por pedrinhas de gelo, claro, catadas do chão.Era a redenção derradeira daquela noite ensolarada. Sem compromisso algum com a sensatez, havíamos acabado de conquistar a Era do Gelo.
Dicas Práticas
El Calafate: a cidade-base do Trekking Glaciar Perito Moreno
O Glaciar Perito Moreno é apenas mais uma das 356 geleiras do Parque Nacional Los Glaciares, na Patagônia Argentina. Dado o fácil acesso – e sua beleza também, claro – terminou por sagrar-se como o glaciar mais famoso da região. O principal acesso ao Parque ( e, por extensão, ao Glaciar Perito Moreno) fica a 78 km, em El Calafate, cidade argentina, já bem próxima da fronteira chilena.
El Calafate é sem dúvida uma das cidades mais visitadas da Patagônia Argentina e, por sediar um dos parques mais famosos do País, serve de base para inúmeras experiências, aventuras e passeios na região; boa parte delas dentro do Parque Nacional Los Glaciares, onde está a Geleira PErito Moreno. Não há voos diretos do Brasil para lá, é preciso sempre fazer um pitstop em Buenos Aires. Nada mal, aliás, boa oportunidade de dar uma passada por lá também.
Localizada na província argentina de Santa Cruz, El Calafate tem uma boa infraestrutura para receber anualmente os inúmeros visitantes de diversas nacionalidades em busca das paisagens surreais da Patagônia Argentina. O centro da cidade é até bem charmosinho com bons restaurantes, pubs, cafés e atrações diversas. A cidade também possui rodoviária e um bom aeroporto.
Onde ficar em El Calafate?
Ao longo da estrada RP 11, que liga o Parque Nacional Los Glaciares a El Calafate, há alguns campings e dentro do parque, um único hotel. A grande maioria dos viajantes, porém, prefere ficar na própria El Calafate, já que as idas ao parque terminam por tomar quase o dia todo.
A cidade é, aliás, uma vila minúscula, mas um tanto charmosa. Com restaurantes, creperias, pequenos museus, cafés e um pub/livraria bem legal. Há até um pequeno cassino na cidade, na rua principal, onde, aliás, concentram-se quase todas atrações. Ou seja, apesar de turística, a cidade é uma atração à parte que oferece lá seus encantos. Dá só uma sacada nesse vídeo promocional da Secretaria de Turismo do município.
Há hospedagem para todo gosto e exigência: hostels descolados, acomodações de bom custo benefício, casas para alugar por temporada e hotéis premium.
Gostei do América del Sur, hostel bem bacana, construído no estilo patagônico, todo em madeira, próximo do centro de El Calafate, mas numa área mais sossegada, com uma boa vista da região. De qualquer forma, vale uma boa pesquisa no booking para avaliar todas as opções e os descontos do dia.
Booking.comComo chegar a El Calafate?
Há voos diários de Buenos Aires – pouco mais de três horas de percurso – que custam, em média, US$ 350 (tarifa cheia normal, sem promoção). Um bilhete de múltiplos destinos, no entanto, que conjugue a partida de uma cidade brasileira a desembarques em Buenos Aires, El Calafate – e quem sabe outra cidade da Patagônia, como Ushuaia, por exemplo – sairá, sem dúvida, um custo-benefício muito melhor e, todos os trechos, mais em conta.
A nova Rodoviária, inaugurada em 2017, fica na C. Antoine de Saint Exsupery 87. Mas há poucas empresas de ônibus servindo a cidade. O aeroporto fica 23km ao leste da cidade; um táxi de lá até o centro custa em torno de 10 a 15 dólares. Quem quiser economizar esta quantia, vale experimentar o trasnfer da Ves Patagonia, que faz o percurso por U$4 (o trecho) ou U$6 ida e volta.
Há voos semanais para Ushuaia, 2h30; Bariloche, 2h; Trelew, 1h30; Cordoba, 3h30, e Buenos Aires, 4h. Os preços, porém, mudam a todo momento. O melhor mesmos é acessar um dos grandes buscadores de passagens aéreas, como skyscanner e decolar, e cruzar as melhores opções para conjugar as datas.
Quando ir à Patagônia?
Faz frio durante o ano inteiro, mas no inverno o negócio realmente complica e não fica muito amistoso para um brasileiro.
De novembro a março é a época ideal, não só pela temperatura, mas, sobretudo pelas longas horas de sol do dia. Nessa época do ano a temperatura à noite em El Calafate, fica, em média, de 0 a 10 graus e ao longo do dia pode chegar a picos de até 28 graus graças à aridez da região.
Como fazer o trekking no Glaciar Perito Moreno?
Para chegar ao glaciar a partir de El Calafate é preciso pegar a estrada. É distante, cerca de uma hora e meia, mas o trajeto, entre as áreas desérticas e as margens do Lago Argentino é belíssimo e até bem relaxante com seus horizontes infinitos e as paisagens áridas. Pode-se chegar ao parque de carro, taxi ou por meio de ônibus dos tours organizados pelas agências de El Calafate.
É bom lembrar que um trekking no Glaciar Perito Moreno, ou em qualquer outra geleira, convenhamos, não é como uma trilha na Floresta da Tijuca. Raríssimos destemidos a encaram sozinho, sem guia. Só mesmo quem já está muito acostumado a cravar crampones no gelo. Portanto, segura a onda e não vá achar que você pode pular de um dia a dia de escritório para aqueles vídeos estilo “Canal Off”. Aqui, tem de ter guia!
No momento da publicação deste post, a licença exclusiva pra o trekking guiado no Glaciar Perito Moreno é da agência Hielo e Aventura. Ela oferece duas modalidades distintas de trilha no glaciar, de diferentes graus de dificuldade: Minitrekking e Blue Ice.
Opção 1 – O “Mini trekking”
Não se engane pelo nome. Não se trata aqui de uma trilhilha infantil. Muito pelo contrário. O Minitrekking no Glaciar Perito Moreno é bem bacana e inclusive exige um certo esforço. Está liberado para pessoas entre 10 e 65 anos.
Um ônibus busca os participantes em El Calafate e, ao longo do percurso até o Parque, são repassadas informações sobre o local e o passeio em geral por meio de audioguias em espanhol, inglês e português.
No quilômetro 70,9 da Ruta 11, o ônibus desmbarca os passageiros. Daí em diante é de barco até o porto “Bajo de las Sombras”. Uma navegação de 20 minutos para atravessar o Lago Rico, com vista para a fantástica parede sul da Geleira Perito Moreno.
Do outro lado, guias aguardam os grupos e os conduzem a um refúgio com instalações sanitárias. A partir daí, você começará uma pequena caminhada pela margem do lago, que inclui uma palestra sobre glaciologia em geral e a Geleira Perito Moreno em particular. Ao chegar à margem da geleira, os guias formarão subgrupos de não mais de 20 pessoas cada um, ocasião de calçar os crampones e por, quando for o caso, os capacetes. Uma vez no gelo, mais instruções de segurança e começará a caminhada.
A dificuldade do trekking é moderada; tem muitas subidas e descidas. São cerca de uma hora e meia de caminhada sobre a geleira.
No final da caminhada, rola uma pequena celebração regada à wisk (literalmente on the rocks) e alfajores de dulce de leche. Depois, o grupo é reconduzido de barco à margem oposta, onde ainda desfruta de uma visita guiada de uma hora nas passarelas e mirantes em frente a Geleira Perito Moreno, a 7 km do porto. Aquele momento de dar uma relaxada e aproveitar aquela vista panorâmica fantástica mais sossegado.
Lembrando que, dado o esforço e do grau de dificuldade , não podem participar pessoas com:
- Excesso de peso.
- Mulheres grávidas.
- Qualquer tipo de deficiência física ou mental que possa afetar sua atenção, marcha e/ou coordenação.
- Doenças cardiovasculares centrais ou periféricas, com capacidades cardíacas ou vasculares deficientes, ou quando utilizem stent, bypass, marca-passos ou outro tipo de prótese. Exemplo: medicamentos anticoagulantes, varizes grau III (são grossas e múltiplas).
- Doenças respiratórias (EPOC, asma, enfisema, etc.).
Para contratar o passeio por um preço bacana, com antecedência, pela internet mesmo é só clicar nesse link do Get Your Guide.
Opção 2 – O “Big Ice”
Esse é mais pesadinho. Três horas com o pé no gelo! Mas para quem estiver em dia com a malhação, dá pra encarar. Eis que aqueles dias sofridos de leg press poderão enfim servir para alguma coisa!
Até a chegada na geleira, o procedimento é basicamente o mesmo do Mini trekking no Perito Moreno. O grupo vai de ônibus até o parque, cruza o Lago Rico de barco numa navegação de cerca de 20 minutos e recebe as orientações sobre o local e as instruções de segurança.
Após a colocação dos grampones e outros acessórios as diferenças ficam por conta do circuito, muito maior (mapa abaixo) e pelo grupo de no máximo 10 pessoas por guia.
Nesse percurso dá para aproveitar as paisagens com mais calma; conhecer melhor as paisagens locais, as vistas dos Cerro dos Picos, Pietrobelli e Cervantes. De quebra, há também um intervalo, na geleira mesmo, de meia hora para almoço. Claro, não é um almoço qualquer. É uma experiência bem única.
Esse passeio só é liberado para adultos entre 18 e 50 anos e, assim como no Mini Trekking, não podem participar pessoas com:
- Excesso de peso.
- Mulheres grávidas.
- Qualquer tipo de deficiência física ou mental que possa afetar sua atenção, marcha e/ou coordenação.
- Doenças cardiovasculares centrais ou periféricas, com capacidades cardíacas ou vasculares deficientes, ou quando utilizem stent, bypass, marca-passos ou outro tipo de prótese. Exemplo: medicamentos anticoagulantes, varizes grau III (são grossas e múltiplas).
- Doenças respiratórias (EPOC, asma, enfisema, etc.)
Interessou? Para agendar o seu Big Ice é só seguir adiante nesse link daqui.
Quanto custa fazer o trekking no Glaciar Perito Moreno?
É caro. O Mini Trekking costuma ser oferecido por U$150 e o Big Ice chega a U$290. Mas, na boa… não é uma experiência qualquer também. É algo para lembrar para o resto da vida. Nos países do hemisfério norte um tour deste sairia ainda mais caro.
Aliás, quanto se gasta numa viagem aos Estados Unidos? E para Europa? Quanto se gasta para hospedar-se numa pousada num balneário brasileiro em alta temporada ou numa festança privê de Reveillon? Aquela bolsa de marca? Aquele tênis de marca… Enfim, tudo é questão de escolha.
Desconhecida de muitos brasileiros, a Patagônia reúne paisagens que não deixam nada a dever aos Alpes ou às montanhas do Canadá (e fica aqui do lado). Além do que, los pesitos doem bem menos no bolso do que dólar, euro ou libra esterlina!
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Abaixo, para quem já definiu seu rumo para Patagônia Argentina e vai encarar o Glaciar Perito Moreno, seguem algumas sugestões de outros passeios em El Calafate.
Fotos: Daniel Marinho e Arquivo Canva
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