A chuva cai, longe. No topo de uma colina ensolarada sobre campos de girassóis e ciprestes, uma alta muralha de pedras do século XII circunda por completo resquícios bem conservados de uma cidade de mais de três mil anos. A vista do alto da Comuna de Volterra, na Toscana (Itália), antes um privilégio estratégico da guerra, para avistar o inimigo com antecedência, é hoje prerrogativa exclusiva da beleza e do deslumbramento de forasteiros.
Quando os Etruscos construíram Volterra (então Velathri), bem antes de Roma ter um império para chamar de seu, jamais poderiam supor que as mesmas pedras que a ergueram sobre alvos alabastros ainda estariam hoje aqui de pé, para sustentar uma cidadezinha de pouco mais de 11 mil habitantes, para onde carros sobem cruzando estradas medievais estreitas, mas não podem entrar.
Politeístas, os etruscos chegaram a atual região da Toscana entre os séculos VII e VI A.C, dividindo-a em doze cidades independentes. Com o nascer da Era Cristã, foram cedendo à preponderância do poder romano, até se submeterem por completo ao Império no séc. III. Volaterrae (terra de que voa, em Latim), como os Romanos a chamaram, era a mais bem fortalecida das doze cidades etruscas. E fora a última a sucumbir.
Com a queda dos romanos, dois séculos depois, o obscurantismo da Idade Média terminou por impor novas crenças, valores e uma arquitetura tipicamente feudal. Ainda assim, a cidade manteve parte de suas construções antigas.
Após a ascensão dos Médici, de Florença, a antiga vila medieval incorporou novos padrões Renascentistas, o que se refletiu nos costumes, na produção artística e na retomada dos modelos clássicos de linhas simétricas das novas edificações.
Herdeira de uma miscelânea cultural assimilada ao longo de quase três mil anos, Volterra é considerada uma das cidades antigas mais bem conservadas do mundo.
Uma caminhada em Volterra
A chuva cai, longe. Mas há sol sob Toscana. E a gula das nuvens esboça um arco-íris de sotaque florentino sobre os ciprestes. Na Província de Pisa, Volterra está enclausurada por um muro de 7Km de perímetro no topo de uma colina de 530 metros, entre os vales Era e Cécina. Não à toa, a estatura ecoa na etimologia do próprio nome, dado pelos romanos.
“Nos dias claros, daqui é possível ver o Mediterrâneo… até a ilha da Córsega!”. É o que me garante o vendedor da gelateria próxima a Porta all´Arco. Um dos marcos mais antigos da cidade. O portão etrusco exibe, ao toque das mãos, seus batentes de arenito do século IV a.C.
Um arco com três estátuas sobre a porta – representando os deuses guardiões de Volterra: Júpiter, Juno e Minerva – vieram após a construção das primeiras fortalezas feudais no século XIII, quando o portão etrusco fora incorporado ao novo muro medieval.
No final da Segunda Guerra, a iminente chegada dos Aliados à região, então ocupada pelos alemães, levou os nazistas a deixar a comuna. O plano de retirada previa, porém, a explosão do portão etrusco para obstruir o acesso à cidade.
Os habitantes se opuseram, mas não conseguiram convencer os soldados. A solução veio na calada da madrugada. Um mutirão de toscanos reuniu-se para tapar a Porta all´Arco com sobras de ruínas de pedra. Da noite para o dia, enclausuraram Volterra tal como desejavam os nazistas, preservando a principal entrada da cidade, reaberta dias depois.
Centro histórico de Volterra: Piazza dei Priori
As rusgas do tempo descaracterizaram a comuna de algum modo, mas, ao menos na aparência, ao caminhar por becos entre paredes de pedra, tenho a sensação de que o relógio não gira mais o ponteiro há alguns séculos. Uma florzinha amarela, cujo nome desconheço, espalha-se entre pedregulhos antigos das vielas. Ninguém precisa plantar ou cuidar, elas brotam do chão e colorem os caminhos que levam à principal praça da cidade, a Piazza dei Piori, a cerca de duzentos metros da Porta all´Arco.
A praça abriga as edificações do governo, caso do Palazzo dei Priori. Inaugurado em 1297, o primeiro palácio civil da Toscana é hoje sede da prefeitura e está aberto a visitações (5€). Vale uma espiada no interior dos salões, sob as abóbadas decoradas de afrescos do século XIII — destaque para a Sala dei Notari (Sala dos Notários). Dica para aquela foto arrebatadora: a vista do alto da torre é um dos melhores pontos de observação de Volterra.
Ainda na praça, há o Palazzo Pretório, antiga administração da comuna, e o Palazzo Vescovile, mercado de grãos transformado em casa do Bispado em 1472. Ao lado, uma bela construção medieval hospeda a Pinacoteca e o Museu Cívico de Volterra, que exibem a influência da arte renascentista na região. O museu está localizado no Palazzo Minucci Solaini, na Via Dei Sarti 1.
Volterra Etrusca, Romana e Medieval
Rume para o Norte, a um passado ainda mais remoto. Literalmente “descoberto” por escavações arqueológicas da década de 50, um teatro romano do sec. I A.C. mantem os traçados do palco e de seus assentos originais, ainda que em ruínas.
Construído para abrigar 3500 pessoas, foi erguido numa encosta natural, tal como os gregos, e depois os romanos, costumavam fazer. Durante as escavações foram encontrados assentos com nomes dos representantes das famílias romanas mais influentes de Volterra ainda gravados no calcário, como as Caecinae, os Persii e os Laelii.
Difícil não imaginar esse palco em seu ápice. As encenações, os atores, a reação do público assentado nos 24 degraus do semicírculo de 60 metros de diâmetro.
Usado no verão para apresentações do Festival Internacional de Teatro de Volterra, o complexo do Teatro di Vallebona (5€) é acessado a partir de sua área superior, nos arredores de Porta Fiorentina.
Seguindo para o leste, na parte mais alta da cidade, o Parco Archeologico Enrico Fiumi reúne sítios de estudos científicos, ruínas, e atrações históricas de períodos tão distantes quanto distintos, como uma Acrópole Etrusca e uma Cisterna Romana. Há ainda uma área de belos bosques, lagos, trilhas para caminhadas, brinquedos infantis, paisagens bucólicas, enfim toda a poesia de um jardim toscano. Resguardo perfeito para aquela esticada no jardim à sombra de um pinheiro toscano.
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Ao seu lado, está um forte medieval, a Fortezza Medicea de Volterra. Erguido em 1472, o Forte abriga um presídio federal, a Casa di Reclusione di Volterra, onde ainda hoje ‘residem’ condenados por assassinato, latrocínio e até mesmo envolvimento com a máfia.
Achou estranho? Vai achar mais! Uma referência internacional, o presídio é pioneiro numa iniciativa denominada Cene Galeotte (Jantares Presidiários), na qual detentos e chefs de grande fama reúnem-se e preparam, juntos, o cardápio dos jantares! Alguns dos detentos, inclusive, servem os pratos como garçons do restaurante da Fortezza Medicea. E vem dando muito certo, como nos conta Marco Sá Corrêa nessa matéria genial da Piauí. Desde 2005, já passaram pelas mesas do Forte mais 15 mil pessoas.
Próximo ao presídio, o maior acervo da herança etrusca da Itália e, por extensão, do mundo, pode ser visitado no Museu Etrusco Guarnacci. Fundado em 1761 – a partir da doação da coleção arqueológica de Mario Guarnacci – é um dos mais antigos museus públicos de história da Europa.
O museu fica no Pallazzo Desideri Tangassi (Via Don Minzoni, 15) onde expõe objetos encontrados durante escavações arqueológicas realizadas na cidade ao longo do tempo. São materiais da pré-história, de culturas orientais, arcaicas, clássicas e do período helenístico (século IV A.C. – século I A.C.), quando os etruscos viveram seu apogeu.
Dá certo arrepio na espinha adentrar os salões escuros com coleções de objetos e urnas fúnebres de argila de mais de 30 séculos de idade. Mas esse é um dos locais mais importantes para compreender a história e formação identitária deste povo e da própria constituição da região Toscana.
Volterra: a Cidade do Alabastro
O Museu Guarnacci está cercado de lojas que se fartam da venda de badulaques de alabastro, mineral abundante na região que deu origem a um artesanato inusitado. Branco, consistente e maleável, o alabastro é usado para todo gênero de utensílio, desde reproduções de objetos da cozinha a simulacros de grandes obras da escultura italiana. Caso da Torre de Pisa de dois metros que turistas simulam escorar com as mãos, ao meu lado, para as fotos.
O Alabastro, que já foi muito utilizado para substituir o vidro, é a estrela do chamado design das miudezas (pequenas esculturas e bijuterias) na Toscana. Para quem quiser se aprofundar no assunto, vale a entrada no Ecomuseu do Alabastro (8€), a poucos metros dali.
Mas se a ideia é “botar a mão na massa”, propriamente, pule uma casa e vá direto ao Rossi Alabastri Volterra, na Piazza della Pescheria. O atelier, fundado em 1912, além de expor suas obras, oferece aulas de lapidação do mineral. Com sorte, você será guiado pelo próprio Sr. Rossi, para transformar o alabastro, de seu estado bruto, em peças originais e objetos de uso cotidiano. O instrutor guia o aprendiz na utilização dos tornos e das ferramentas de entalhar, dentre outras técnicas do artesanato toscano (o vídeo abaixo é uma pequena amostra de uma parte da oficina). Uma experiência e tanto.
Volterra no Cinema e na Literatura
Há quem tenha feito fortuna com o alabastro. Giuseppe Vitti, famoso comerciante do mineral no século XIX, comprou um dos mais belos palácios particulares da Itália à época. Hoje, aberto ao público, o Palazzo Incontri-Viti recebe diariamente o público para visitar seus doze quartos mobiliados tal como foram concebidos. O palácio ainda é habitado por descendentes da família Viti e reúne uma grande coleção de objetos orientais antigos que pertenciam a Viti, um viajante eclético.
Em 1964, as suntuosas salas do palácio foram tomadas pela sensualidade de Claudia Cardinalle, nas locações do filme de Luchino Visconti, “Vagas estrelas da Ursa Maior”, vencedor do Leão de Ouro de Veneza, no ano seguinte.
Volterra também é o cenário soturno-teen da saga Crepúsculo. Foi no Vicolo Mazzoni – um beco medieval da cidade – que a escritora americana Stephenie Meyer ambientou o enredo de uma família nobre com poderes sobrenaturais. Atualmente, é conhecido como “o beco dos vampiros” e, claro, recebe centenas de turistas anualmente à procura dos lugares descritos na obra. Há inclusive esse tour especialmente dedicados ao livro/ filme.
Toscana, sob sol ou chuva
Caminhar pelas vielas de Volterra é como adentrar tuneis do tempo aleatórios. Ao dobrar de uma esquina há uma encruzilhada de períodos históricos distintos e distantes. Como se não bastasse, “do alto dos três mil anos de história que a contemplam”, Volterra é também uma cidade que soube conservar o passado.
Uma vez dentro do muro, por vezes me perdi numa experiência arbitrada por uma máquina do tempo casual. Um labirinto de atrações dispersas reunido para contar ao mundo a história e importância de todos os povos que por aqui passaram.
Retorno à entrada da cidade pela Porta Al Arco, e chego a mesma rua (Viale dei Ponti) de onde observara, à distância, as nuvens carregadas sobre Florença, a quilômetros daqui.
Agora, já fazem um cerco à cidade. Uma frota de chuveiros faz os campos da Toscana de alvo e trincheira. Encobrindo as vinícolas do caminho, vão varrendo, ponta a ponta, o vale rural de Pisa, num plano a perder de vista.
As nuvens negras alcançam agora o domo da Catedral de Santa Maria Assunta, do séc XII e ameaçam os turistas da rua que correm em busca de abrigo.
O vento é forte e úmido, mas insisto, sentado sobre o muro, hipnotizado pela ironia do céu italiano enegrecido, sob a chuva da Toscana. Em poucos minutos, a garoa daria vez a uma dilúvio torrencial para lavar as pedras milenares da cidade. E a alma.
Fotos: Autor/ Arquivo Canva
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