Ushuaia: na ilha dos pinguins do fim do mundo

Já é de manhã, mas os raios de sol pouco amenizam a brisa gelada do mar. Não é um litoral qualquer. Caminhando pela região portuária do Ushuaia, a cidade mais próxima da Antártica no planeta, solapadas indiscretas de uma brisa hibernal arrepiam a espinha, mas acalentam o coração explorador.

Em frente ao Canal do Beagle, que une os oceanos Atlântico e Pacífico, já nos calcanhares do mundo, nunca estive tão perto do Polo Sul. E botar os pés na capital da Terra do Fogo, a última das províncias Argentinas, para além da Patagônia, gera um conforto existencial enternecedor, uma sensação de realização pessoal por testemunhar um local tão remoto, inacessível por tantos séculos e, não à toa, batizado de “o Fim do Mundo”.

É o que confirmam as palavras inscritas na placa mais famosa da cidade, para onde visitantes, turistas e marinheiros vão tirar fotos quando chegam e timbrar o carimbo extraoficial de passaporte.  

Alguns, de passagem, batem perna em meio ao “stop over” das navegações internacionais – embarcações argentinas, russas, americanas, em sua maioria militares – que de lá, ao zarpar, terão a prerrogativa singular fueguina: escolher o oceano a singrar.

À esquerda, as águas salgadas do Atlântico; à direita, a vastidão do Pacífico. E, para além do fim do mundo, os que enfrentarão o temido Estreito de Drake rumo à Antártica.

Do Ushuaia à Estância Harberton

Com destino mais singelo, eu e Mariana aguardamos o ônibus que deixará Ushuaia rumo ao leste da Terra do Fogo, até o pequeno porto da Estância Harbeton. De lá, partiremos pelo mar para a Isla Martillo (La Pinguinera), pequena ilhota que hospeda uma colônia de cerca de três mil pinguins.

A primeira meia-hora de estrada lisa e asfaltada nos dá a dimensão dramática do posicionamento do Ushuaia. Escorada na face sul das últimas montanhas da Cordilheira dos Andes, defronte ao mar, a capital da Terra do Fogo está completamente isolada. De olhos para a Antártica, dá de ombros ao resto do mundo. Como se quisesse lembrar que nunca dependeu de ninguém para sobreviver.  

É uma meia verdade. A cidade cresceu a partir da atividade portuária e tornou-se um dos principais entrepostos de embarcações internacionais do hemisfério austral. Sua condição geográfica estratégica também chamou atenção do governo argentino, que vem instalando bases militares e, desde meados do século passado, estimula o povoamento da região com incentivos de todo gênero (inclusive fiscais, Ushuaia fica em uma Zona Franca)  

Mas voltemos à estrada, que agora deixa o asfalto para serpentear em caminhos de rípio – mistura de terra, cascalhos e bolotas de pedra que chegam ao tamanho de uma laranja – típico da Patagônia. O caminho rasga vales mais sinuosos, por cerca de uma hora, até alcançar o litoral novamente. Mas o vai e vem afeta os labirintos desabituados e uma náusea generalizada impõe um pit stop não planejado. Os passageiros hão de retomar o controle da relação figura/fundo.

É um alento porque o sol também desembarca e o horizonte se descortina em um cenário de praia polar incomum e, como tudo por aqui, desabitada. Cercada de árvores de galhos retorcidos pela ferocidade dos ventos patagônicos, o balneário hibernal bebe as últimas gotas de um riacho que cai da cordilheira.

Ushuaia

Minutos depois estamos na Estância Harbeton, primeiro assentamento europeu na Terra do Fogo. Fundada em 1886, pelo missionário inglês Thomas Bridges (1842-1898) , vive hoje, em boa medida, do turismo. Promove atividades diárias e tours guiados nas cercanias.

Um deles vai ao Museu Acatushun. Administrado pela propriedade, reúne uma das uma das coleções mais importantes da fauna fueguina com 2.800 espécimes de mamíferos marinhos e 2.300 de pássaros locais.

A fazenda não passa de uma pequena vila à margem do Canal do Beagle. Há também algumas poucas acomodações nos pequenos casebres do terreno e um refeitório no casarão maior. É para lá que vamos nos agasalhar com chá e café enquanto aguardamos a partida para Ilha Martilho.

Ilha Martilho, la Pinguinera

Um bote branco motorizado coberto com uma lona azul encosta no pequeno porto da propriedade. Cruzar os mares invernais da terra do fogo numa canoa inflável aparentemente tão frágil, à princípio, assusta. Mas o pequeno bote dá conta e em 15 minutos já avistamos o litoral da Ilha Martillo, um descampado de vegetação rasteira, borrifado por pontilhados brancos.

À medida que nos aproximamos pelo mar, os pontilhados se mexem. Vão ganhando forma. Forma de aves gorduchinhas que andam meio desengonçadas, jogando o corpo para ambos os lados, em passos curtos mas decididos. Um punhado de pinguins entusiasmados vem voluntariamente nos receber no desembarque.

Ao descer, pisamos num mundo tão desconhecido quanto inabitual, provavelmente guardado no baú dos sonhos perdidos de infância. A cena é tocante. Mesmo. Não esperava uma colônia tão volumosa. E muito menos tão desinibida.

Tento dar os três metros de distância solicitados pelo guia, mas, ao desembarcar, um grupo de pinguins vem em minha direção e me cerca sem a menor cerimônia, como se me pedissem selfies – afinal sou eu o estranho no ninho.

As instruções são claras. Deve-se falar baixo, evitar movimentos bruscos e não podemos tocá-los. Mas a proximidade é grande o suficiente para acharmos que estamos fazendo novas amizades. Não fosse o vento gelado, precisaríamos de um ou outro beliscão para acreditar naquilo.  

Mesmo no verão, o frio é intenso. Ventos não dão trégua numa ilha descampada no extremo sul da Terra do Fogo. É preciso vestir-se dos pés ao último fio de cabelo.

Ainda na praia, um biólogo disserta sobre as principais características da espécie predominante na ilha. De costas negras e barriguinha branca, o Pinguim-de-Magalhães  chega a uns 70 cm de altura. São aves caçadoras bem adaptadas a vida marinha. Exímios nadadores, mergulham a 90 metros de profundidade para procurar peixes, crustáceos e lulas no mar gelado.

Isla Martillo (Pinguinera) no Ushuaia.

Cá estão, no verão, para reproduzirem-se já que é nessa época que sobem à ilha para fazerem suas ninhadas. Não à toa, é a ocasião ideal para visita.

Seguimos em fila indiana ao interior da ilha, adentrando-a por trilhas bem demarcadas que nos levam a grupos de pinguins mais reservados. Lá, pequenas reentrâncias na terra revelam ninhos e filhotes, vigiados por pais desconfiados.

Seguindo, no litoral oposto ao berçário insular, chegamos a uma praia, adotada por outros animais da fauna local.  É um terreno mais ermo; alguns esqueletos de pinguim jazem à luz do dia… assustam. A vida, enfim, é selvagem. 

Há um clima de documentário da National Geographic.  A residência de cerca de 3 mil Pinguins-de-Magalhães, com os quais divido uma ilha remota ao Sul do Ushuaia, exalta os brios e enterneceria o coração de qualquer um. 

O Pinguim-de-Magalhães  chega a uns 70 cm de altura. São aves caçadoras bem adaptadas a vida marinha. Exímios nadadores, mergulham a 90 metros de profundidade para procurar peixes, crustáceos e lulas no mar gelado.

Isla Martillo (Pinguinera) no Ushuaia.

Mas temos de ser breves. A visitação diária da temporada de verão não pode ultrapassar os sessenta minutos. Uma das condições em favor do habitat das aves pequenitas.

Contornamos a ilhota pela beirada da ilha e, pouco depois, já avisto o bote escorado nas pequenas pedras da praia sem areia da Ilha Martilho. Não é fácil se despedir dos novos amigos. Uma profusão de cliques fotográficos assinala os minutos derradeiros. Como se quiséssemos levá-los para casa. Após uma ou outra explanação do biólogo será preciso embarcar.

Antes, alguns pinguins se aproximam, vindo do mar. Sacodem-se ao pisar em terra firme, espirrando água polar para todo os lado. Caímos em gargalhadas. Nada mais justo. Cientes do fascínio que provocam, aproveitam-se da vulnerabilidade dos olhares apaixonado. Nada mais justo. Finda a apresentação, as estrelas divertem-se tirando onda com a nossa cara.

Ouço, enfim, o ruido do motor que agora empurra o bote sobre o canal do Beagle. O giro das pás sobre água vai calando o canto dos pinguins, à medida que a ilha se apequena. O cheiro que empesteava a terra dá vez ao aroma marinho patagônico. Em breve, estaremos separados de novo. De volta a nossas realidades tão díspares. Cada qual em seu mundo.

Que assim seja. Há incompatibilidades evidentes e minha espécie não goza de boa fama. Sorte a deles adaptar-se tão bem a condições que nos são quase inóspitas.

Sorte a nossa, aliás. Porque também não haverá distância que nos separe. Porque também não haverá tempo suficiente para esquecê-los. Porque, onde quer que estejamos, acalentará a alma saber que sempre haverá a ilha dos pinguins do fim do mundo.


Dicas Práticas

1 – Aproveite para um “stopover” em Buenos Aires na ida

Há até quem venha do Brasil por terra. Uma expedição fantástica! Mas, convenhamos. Nem todos tem a disponibilidade de cruzar os mais de dez mil quilômetros de ida e volta.

Pelos ares também não há voo direto do Brasil. Há de se fazer conexão em Buenos Aires. O que não é de todo mal, já que pode rolar aquele tempo bacana para curtir a agitação portenha por uns dias.

Nesse caso, recomendo uma parada de alguns dias na ida. Sim, porque daí você já agiliza aqueles procedimentos essenciais de entrada. Dá para fazer câmbio e comprar um chip local de internet para celular, por exemplo, com muito mais facilidade (e melhores preços) na capital.

2 – Se possível, estenda a outros destinos da Patagônia

Não é todo dia que você desce a região continental mais próxima da Antártica do nosso planeta. Vale a pena conjugar com algum outro destino da Patagônia. Há voos do Ushuaia às cidades de Río Gallegos, 1h; El Calafate, 1h20; Trelew, 2h; Bahía Blanca, 3h e Cordoba, 4h. Desses, sem dúvida alguma, El Calafate é a boa pedida. E, acredite, vale muito a pena! A cidade é a base de uma série de atrações tão inesquecíveis quanto a Pinguinera. Nesse post do Escriba, conto como é o trekking sobre o Glaciar Perito Moreno por lá.

Ushuaia Ushuaia: na ilha dos pinguins do fim do mundo

3 – Compre todos os trechos num único bilhete. Sai mais em conta!

Várias aéreas levam do Brasil a Buenos Aires. De lá ao Ushuaia, só a Aerolineas Argentina. Vale comprar logo o trecho completo, sobretudo se você ainda acrescentar outros destinos dentro da Argentina também. Bilhetes múltiplos (vários trechos de uma vez) geralmente saem muito mais em conta do que a compra de trechos independentes. Exemplo, experimente clicar na aba bilhetes múltiplos de qualquer buscador de passagens (eu gosto do Skyscanner) e cotar logo tudo de uma vez: São Paulo – Buenos Aires – Ushuaia – El Calafate – São Paulo.

4 – Atenção para conexões com intervalos muito curtos entre os voos (ou com aeroportos diferentes)

A imigração também é sempre feita em Buenos Aires. Ou seja, será preciso retirar a bagagem, passar pela alfândega e redespachar as malas. Aqui mais uma regra de ouro: não compre passagem com intervalo de conexão menor do que duas horas entre os voos. Voos atrasam, aeroportos internacionais são grandes e, muitas vezes, desconhecidos do passageiro. Não vale ariscar o stress. Lembre-se também de identificar os aeroportos dos trechos de conexão. Há voos com conexão em Buenos Aires que exigem a troca entre os dois principais aeroportos da cidade (Ezeiza e Aeroparque). Dependendo do horário é mais de uma hora e meia entre um e outro.

5 – Cogite ficar no Ushuaia, ao menos, três dias inteiros

A capital da Terra do Fogo, claro, oferece outras atrações além da Pinguinera. Destaque para o belíssimo Parque Nacional Tierra del Fuego (vídeo abaixo), o Glaciar Martial e os passeios de barco ao longo do Canal de Beagle. Na área urbana, desbravar as ruas dessa cidade histórica e pitoresca, com características tão singulares, por si só, já e uma atração. É a boa hora para fazer compras, já que o Ushuaia é uma Zona Franca. Não esqueça também de reservar um tempo para uma visita no antigo Presídio Nacional e no Museo del Fin del Mundo.

6 – Hospedagens próximas ao centro de Ushuaia são mais práticas e mais em conta

O belíssimo Aeropuerto Internacional Malvinas Argentinas fica cerca de 4km do centro de Ushuaia. Táxis fazem o percurso de lá até o centro por apenas uns 5 dólares. Não é o caso de se preocupar com outro transporte ao chegar.

A oferta de acomodação é bem vasta: de hotéis medianos aos mais sofisticados, de hosterías a apart-hotéis, de cabanas a albergues e campings. Os que ficam nas encostas dos morros garantem as melhores vistas da baía e mais sossego. Mas hospedar-se na região do centro, por outro lado, é mais prático e, na maioria das vezes, menos custoso. É de praxe todos possuírem possuírem boa calefação e wi-fi. Há boas opções de aluguel por temporada também.

Booking.com

7 – Ushuaia pronuncia-se “ussuáia”

Essa é para chegar já impressionando os locais 😉

Isla Martilo (Pinguinera)

8 – Como chegar na Ilha Martilho (Pinguinera)

Só há uma empresa autorizada a desembarcar na Ilha Martillo: a Piratour. Esse monopólio pode parecer estranho, mas não é incomum em regiões turísticas argentinas. Nesse caso, há ainda outro detalhe: a ilha é propriedade da Estância Harberton e essa é a única empresa contratada por eles.

Há outras agências cujas embarcações, provenientes do porto do Ushuaia, chegam até as proximidades da ilha Martillo, mas não podem desembarcar. Ou seja, os pinguins são vistos do barco e a experiência, obviamente, não é a mesma. Já que o grande barato, relatado na crônica desse post, é mesmo a imersão. Mas, para quem se interessar, algumas plataformas conhecidas, como o Get Your Guide e a Civitatis (abaixo) vendem esses bilhetes.

9 – Quando ir à Ilha Martilho (Pinguinera)

Os passeios ocorrem nos meses mais quentes do ano, geralmente de outubro a março (cheque antes), ocasião em que as colônias de pinguim sobem a ilha para a reprodução. No auge da migração, de dezembro a março, estima-se que mais de 20 mil pinguins de magalhães, caracterizados pela coloração cinza das plumas dos filhotes e pelo dorso negro e a barriga branca dos adultos, se reúnam na ilha.  O tour com o catamarã que apenas rodeia a ilha, ocorre ao longo de todo ano.

Atenção: por “meses mais quentes” entende-se meses muito frios com ventos gelados e ainda assim (tremo só de pensar) não tão desgraçadamente gelados quanto no inverno.  Lembre-se de sua avó: leve agasalho!

10 – Quanto é a empreitada?

Olha não é barato. Mas, convenhamos, não é uma atração qualquer também! Pode acreditar que é mais barato do que um dia na Disney. E os pinguins são de verdade!!! (foi mal, Walt…). Seguem os dados da agência que leva até a Pinguinera:

  • Partidas: Diariamente às 14:30, na agência no Porto (não há mais saídas pela manhã)
  • Duração: 6 horas.
  • Tarifa: US$ 130 (entrada na Estancia Harberton incluída) / US$ 70 menores dos 3 aos 11 anos inclusive.
  • Incluso: Visita guiada ao Museu Acatushun, ida e regresso de ônibus.
  • Não incluso: Translado (Hotel – Porto – Hotel) e alimentação.

11 – Agende com muita antecedência! Mesmo!

É a dica mais importante. Com um número limitadíssimo de participantes (20 pessoas por visitação a cada dia) e apenas uma empresa explorando o serviço, o número de pessoas, claro, lota rápido. Sobretudo porque a atração vem ganhando mídia nos últimos anos. Decidindo via ao Ushuaia, não tenha dúvida: esse será o primeiro tour a reservar! É bom dar uma checada na disponibilidade antes mesmo de comprar a passagem!

Daniel Marinho

Daniel Marinho

Editor do Escriba de Bordo

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